quarta-feira, 3 de março de 2010

Voto de Louvor: D. Manuel Clemente, Prémio Pessoa 2009

Foi com muito orgulho que no passado dia 1 de Março de 2010 a Assembleia Municipal do Porto aprovou com unanimidade um voto de louvor a D. Manuel Clemente, Bispo do Porto, pelo  reconhecimento do seu trabalho, ética e valores consagrados na atribuição do "Prémio Pessoa 2009". Obrigado pelo trabalho, dedicação e lucidez.
De forma simples, este blogue vem reforçar a admiração e reconhecimento a D. Manuel Clemente dando visibilidade ao texto de sua autoria "O Arco Em Que Tudo Acontece", publicado no "Manual de Leitura" (©Centro de Edições TNSJ) do espectáculo "Breve Sumário da História de Deus" (produção Teatro Nacional São João, Porto) do dramaturgo português Gil Vicente, com encenação de Nuno Carinhas (Encenador, Director Artístico do TNSJ). 






"O Arco Em Que Tudo Acontece" 
Um breve sumário da história de Deus levado à cena no Teatro Nacional São João do Porto, quase a findar 2009…


Um momento também, para nos surpreendermos com o enunciado. De facto, é muito desproporcional. Da palavra imensa que é “Deus”, com tudo o que evoca e ainda mais o que adivinha, à limitação de semanas, em espaço definido. Espaço cenograficamente “concentrado” e em penumbra na maior parte do tempo breve, até irromper o tempo todo, abrindo-se a luz e finalmente a porta. 
Valha-nos o facto do espaço nos integrar a nós, actores ou espectadores, com a natureza de novo imensa de cada um. Encontramos então o arco em que tudo acontece, de imenso a imenso, através das mediações do espaço e do tempo. Aqui, agora, num teatro do Porto. 
Quase só o génio de Gil Vicente nos podia situar assim, tão desmedidamente afinal. Conhecemo-lo: de auto em auto, lá desfilam todos e a tratar de tudo. Figuras celestes, as mais sublimes, e retratos terrestres, os mais comezinhos, dignos ou risíveis. Trechos de ritual, até nalgum latim da escrita, e apontamentos do linguajar corrente, como se não estranhava ainda nos serões da corte. 
Já com razões modernas, de cristianismo reformista, em que Mestre Gil se dizia e comprometia; e conservando ainda a integralidade medieval de culto e cultura, em que tópicos bíblicos e lugares da altura se encontravam bem numa ambiência só, misturando figuras dos dois Testamentos com gente contemporânea do autor e acontecimentos de “actualidade”. 
Mas a história era “de Deus” e brevemente sumariada. Como se fosse possível e como Gil Vicente acreditava ser. – Donde a ousadia? Vivo hoje, responderia apenas: – Creio assim! O seu cristianismo traz a religião para a história humana, como acontece. Não parte da eternidade para a história, reconhece na história o sinal que a alarga. E, precisamente, no que haja de mais circunstancial e episódico, também mais autêntico. 
É por isso que nos faz rir ou chorar e nunca nos deixa indiferentes, meio milénio depois. É de nós que Gil Vicente trata, como se nos conhecesse já. Ou melhor, porque já nos conhecia, naquilo que transportava em si da humanidade comum. Por isso é um humanista de primeira e é primeiramente um humanista, situando-se naquela verdade que no sumário de cada ser humano se distende infindamente, como em Deus. 
Deus faz-se história porque incarna, sabia-o Gil Vicente. E faz-se breve, sumaria-se, porque, vivendo inteiramente cada momento, aí mesmo realiza a sua integralidade. Sua e nossa, porque de relação se trata: criação, queda e recriação, de Adão a Cristo, tudo se re(con)duz, quando Adão somos nós. O resto da história também nos pode sumariar brevemente. Mas só quem o sabe o vive e só quem o vive o sabe e pode dizer escorreitamente, como Gil Vicente aqui. 
Como Nuno Carinhas e os seus colaboradores e actores o retomam espectacularmente agora, sumariando-se também. Num trabalho de profunda e só assim belíssima coincidência com a escrita e a alma do mestre dos autos de el-rei. 
Tudo fica breve, porque mais seria excesso. Tudo fica dito, porque basta para entrever. Da história de Deus, abrindo eternidade no tempo, só se pode falar como entrevisão. E assim é arte. Espantosa ocasião de nos espantarmos de nós. Entre figuras e sentenças, Gil Vicente reencontrou-nos. Na mesma história afinal. 
Por alguns dias, num teatro do Porto, o breve sumário de tudo…
D.Manuel Clemente, Bispo Do Porto"








"Breve Sumário da História de Deus" de Gil Vicente
Encenação: Nuno Carinhas/Fotografia de João Tuna
©TNSJ